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O COUTO MISTO OU MIXTO
Tal como o Cambedo, havia ainda outras aldeias promíscuas, mas agora, vamos deixar as promiscuidades de parte.
Imaginem que três aldeias da raia entre Portugal e Espanha se constituíam numa pequena república, com regras e privilégios muito próprios e independentes dos dois estados, em que os naturais dessas aldeias poderiam optar pela nacionalidade portuguesa, pela espanhola ou por nenhuma delas, que não pagavam tributos ou impostos nem a Portugal nem a Espanha, que não usavam documentos de identificação pessoal e que juridicamente não estavam sujeitos a nenhum dos estados, que podiam usar armas sem qualquer licença e que não cumpriam o serviço militar nem em Espanha nem em Portugal. Uma república onde não existiam impressos, papeis selados, modelos ou normas, etc, e que em qualquer papel comum podiam fazer todo o tipo de acordos, contratos ou documentos. Uma república que se auto governava e discutia os seus assuntos ou firmava acordos em assembleia com todos os seus habitantes e que elegia entre os seus, um Juiz que exercia as funções governativas, administrativas e judicias, auxiliado por homens-bons das três aldeias, também eleitos entre si e, que guardavam o seu arquivo e selos numa arca de madeira fechada a três chaves (uma por cada aldeia), que para abri-la, além das três chaves, tinham de reunir a presença de pelo menos 12 homens-bons das suas aldeias.
Imaginem uma república que podia comprar e vender, quer em Portugal quer em Espanha, todo o tipo de produtos e mercadorias, sem com isso ter obrigação de pagar direitos, apresentar guias ou qualquer documento aduaneiro. Uma República que não permitia a entrada das autoridades espanholas ou portuguesas em perseguição de qualquer indivíduo de um desses estados, excepto os perseguidos por delitos graves, como o homicídio, mas que além de não permitirem a entrada das autoridades, ainda acolhiam os fugidos e lhes davam asilo. Imaginem ainda que nas terras desta república podiam cultivar todos os géneros, sem quotas ou objecto de estanco como o tabaco.
Pois não é necessário imaginarem mais, porque essa república existiu mesmo e dava pelo nome de Couto Misto ou Couto Mixto e, era composta pelas aldeias de Rubiás, Meaus e Santiago. Aldeias de montanha, localizadas entre o Concelho de Montalegre (Portugal) e os concelhos de Baltar, Calvos e Randim (Galiza), tinha cerca de 27 hectares de território e menos de 1000 habitantes. Foi assim desde o início da nacionalidade portuguesa até ao de 1864
Se quiser saber mais sobre o Couto Misto recomendo uma visita às páginas da NET em:
Mas o que tem a ver o Couto Misto com o Cambedo!?
O CAMBEDO E O COUTO MISTO
Ainda ontem dizia que para melhor se ficar a conhecer o Cambedo tínhamos de fazer um regresso no tempo e abordar o Couto Mixto, a promiscuidade dos povos da raia e o ano de 1864, ano do Tratado de Lisboa em que o Cambedo se torna uma aldeia portuguesa, até aí promíscua, ou seja, dividida a meio, em que metade da aldeia era portuguesa e a outra metade espanhola.
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Se repararam, referi que o ano1864 ditou o fim da promiscuidade do Cambedo e o fim do Couto Misto. Mas já antes, e tal como refere Paula Godinho na Revista História, o fim do Cambedo promíscuo era debatido nas cortes:
“ (…) Em 27 de Agosto de 1856 fora decidido pela comissão de negociação luso-espanhola do tratado fronteiriço que pretendia pôr cobro às situações híbridas, que Cambedo passasse a integrar o território espanhol, proposta que virá a ser anulada, reconfirmada, rebatida. Levanta-se também a questão do Couto Misto, (…), tendendo os negociadores a ceder ambos a Espanha.
Na proposta final de tratado de limites, concretizada em 1864, Cambedo da Raia torna-se definitivamente uma aldeia portuguesa. (…). Sem serem tidos nem chamados às negociações onde o território das suas vidas estava a ser alvo de decisões, atribuem à sorte que o estabelecimento da linha fronteiriça tenha sido nas águas vertentes dos montes, permitindo assim que com a unificação da aldeia não ficassem prejudicados todos os seus habitantes no que se refere ao aproveitamento agrícola. (…)”
O TRATADO DE LISBOA DE 1864
Assim, em 1864 com o chamado Tratado de Lisboa rectificam-se as fronteiras, passando as três aldeias do Couto Misto a ser pertença do Reino Espanhol enquanto que as aldeias promíscuas de Soutelinho da Raia, Cambedo e Lamadarcos passavam a ser exclusivamente pertença do então reino português.
Claro que esta promiscuidade dos povos da raia não termina com a assinatura do tratado de Lisboa, muito menos no Cambedo. De um lado e outro da fronteira o povo e as gentes continuaram as mesmas, os mesmos usos e costumes, as mesmas amizades, família e até dificuldades quase sempre vencida com a solidariedade de ambos. Em suma passou a existir uma fronteira oficial resultante de um tratado, mas apenas isso, pois entre os povos da raia nunca existiu qualquer fronteira e, não iria ser um marco e uma linha imaginária ou um tratado que os iria separar. Uma das curiosas provas disso mesmo é a coexistência no panteão da igreja do Cambedo de um S.Gonçalo de Amarante e, um outro S. Gonçalo, dito «espanhol» ou, um S.Gonçalo novo (português) e um S. Gonçalo velho (o espanhol), tal como os namoros e os casamentos entre naturais do Cambedo e naturais das aldeias vizinhas galegas. O Próprio Juan, o meu herói desta história, andou de namoricos pelo Cambedo.
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A GUERRA CIVIL ESPANHOLA
Digamos que os acontecimentos de Dezembro de 1946 no Cambedo começam com a guerra civil espanhola. Por isso é importante e obrigatório fazer uma abordagem por essa guerra civil e pela Galiza de então.
Com a renúncia de Primo de Rivera após uma onda de escândalos de corrupção, o rei Alfonso XIII procurou restaurar o regime parlamentar e constitucional em Espanha e convoca eleições em Abril de 1931. Embora os monarquistas tenham saído vitoriosos, os republicanos conquistaram a maioria das grandes cidades. Prevendo uma guerra civil, o rei Alfonso XIII abdica e proclama-se a Segunda República em Espanha. Entre confusões com a separação da Igreja do Estado, a esquerda, direita, centro republicanos, são marcadas novas eleições para Dezembro de 1931, nas quais a esquerda sai vitoriosa. Alcalá Zamora é eleito Presidente da República e encarrega Manuel Azaña de organizar governo. Questões mal resolvidas ou não resolvidas referentes às autonomias, agricultura e trabalhista, bem como relacionadas com a igreja, levam a que Azaña não agrade à população. Em 1933, sem o apoio dos anarquistas, a esquerda perde as eleições em favor da direita à qual se segue uma insurreição da esquerda que foi mal sucedida em toda a Espanha, à excepção das Astúrias. Com milhares de militares feitos prisioneiros, os anarquistas decidem apoiar a esquerda nas eleições de 1936, que vencem em 16 de Fevereiro. Em 18 de Julho de 36, a direita faz um golpe militar em toda a Espanha tendo também a igreja tomado um papel destacado com a sua identificação com a direita e que viria a pagar caro nos primeiros meses de guerra civil.
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A partir de aqui é aquilo que sabemos, a chamada Guerra Civil Espanhola com as lutas por um lado da Frente Popular, composta por republicanos de esquerda, comunistas, anarquistas, nacionalistas da Galiza, Pais Basco e Catalunha, que defendiam a a legitimidade do regime instalado recentemente no Estado, (a República proclamada em 1931 e os respectivos Estatutos de Autonomia).
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Do outro lado os nacionalistas (compostos por monárquicos, falangistas, e militares de extrema direita, etc. O seu referente político (sobretudo para a Falange) era o general Sanjurjo, chefe da intentona militar de 1932, mas que morreu num acidente aéreo ao transladar-se do nosso país (Portugal) para a zona ocupada pelos nacionalistas. Durante o decorrer da guerra, os nacionalistas foram chefiados pelo militar Francisco Franco e irão aceitar progressivamente a sua indiscutível liderança até se chegar ao “Movimento Nacional” de Franco, cujas tropas acabariam por ser reforçadas pela ajuda militar directa da Alemanha de Hitler, expressa no bombardeamento a Guernica e Madrid, e da Itália de Mussolini. O Vaticano apoiou igualmente Franco, e Salazar era o amigo Português.
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Em 1 de Abril de 1939, Francisco Franco dá como terminada a guerra, com a morte de mais de 400 mil espanhóis e uma queda enorme na economia, com a morte de mais da metade do gado, a queima de vários campos e milhões de moradias destruídas. Um abalo financeiro e queda do PIB que demorou quase 30 anos para se normalizar. Outras fontes ressaltam a dificuldade em quantificar o número de mortos por causa da guerra originada pelo chamado "Movimiento Nacional", mas colocam o dado para todo o período do franquismo em mais de 2 milhões de pessoas mortas sob o regime fascista, grande parte já no pós guerra civil.
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A GUERRA CIVIL NA GALIZA
Na Galiza, zona da "retaguarda fascista" (militarmente ocupadas logo no início), a luta republicana encontrou a forma de guerrilhas organizadas que levaram a luta muito para lá do ano de 1940. Aliás as guerrilhas mantiveram-se na Galiza até1956 com muita força, iniciando-se um período de decadência a partir desta data, devida em parte ao abandono dessa estratégia por parte do PCE, até ocorrerem os últimos assaltos e combates em 1967, com a morte do último guerrilheiro e o exílio de outros.
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Segundo dados fornecidos por diferentes historiadores foram presas ou mortas cerca de 10.000 pessoas relacionadas com a guerrilha galega durante esses anos. Mas não é pacífico este número.
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O Franquismo instaurou na Galiza o método dos "passeos" (ir procurar pessoas a sua casa para "passeá-las", isto é fuzilá-las à noite e deixá-las nas valetas e nos campos). Através deste método do "passeo", dos conselhos de guerra realizados contra civis, dos fuzilamentos maciços dos prisioneiros e dos confrontos armados com a guerrilha morreram 197.000 galegos (fonte "La Guerra Civil en Galicia" edic. La Voz) durante o regime franquista, das quais a grande maioria continua em valas comuns, algumas descobertas recentemente. Quanto ao exílio, cerca de 200.000 galegos fugiram exilados para outros países nesse período.
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Por outro lado, os campos de concentração mais conhecidos na Galiza são os de Lubiám, Lavacolha (Compostela) e o cárcere de extermínio da Ilha de S. Simão (Vigo), assim como os respectivos cárceres de cada cidade. Existem ainda em cada cidade ou vila lugares ainda não reconhecidos de fuzilamento maciço e continuado de pessoas que foram consideradas "perigosas" para o regime fascista.
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E é aqui que chegamos até aos guerrilheiros antifranquistas galegos e/ou até aos simples fuxidos que procuraram abrigo em terras da raia de Portugal, ao longo de toda a fronteira, mas principalmente em terras dos concelhos de Vinhais, Chaves e Montalegre.
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Mas só amanhã é que nos vamos “infiltrar” na guerrilha e nos guerrilheiros ou maquis que procuraram abrigo do lado de cá.
Até amanhã!