Domingo, 23 de Dezembro de 2007
Cambedo - Dia 12 - A imprensa da época.

 

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E para terminar, vamos fazer uma abordagem pelo que foi dito oficialmente e na imprensa escrita da época sobre os acontecimentos do Cambedo, após os mesmos, claro.
 
Lembre-se que estávamos em 1946 em que a censura estava sempre presente em qualquer escrito mas sobretudo realce-se a imagem feita e oferecida a todos dos guerrilheiros antifranquistas, que em Portugal de então, nunca foram considerados como tal, mas sempre como bandoleiros, bandidos e atracadores, entre outros.
 
O que rezaram os relatórios oficiais e imprensa
 
Já sabemos que em 1946 estávamos em pleno regime Salazarista. Sem querer aprofundar aquilo que foi dito pelos relatórios oficiais da PIDE e outros tais das forças intervenientes no ataque ao Cambedo, em que se relatou o politicamente correcto para o regime, além, (claro) da marcação de pontos e promoção pessoal dos relatores. Em todos eles foi ignorado, como convinha, a existência da povoação inocente do Cambedo e o seu povo também inocente, incluindo crianças, que foram obrigadas a viver debaixo do fogo cruzado das armas durante dois dias (uma delas ferida com um tiro). Dos fracos e inocentes não reza a história, e se rezou, não foi para inocentar, mas antes para culpabilizar, prender e torturar mais de um terço da sua população.
 
Da actuação dos funcionários do regime intervenientes na batalha do Cambedo (GF, GNR, PSP e Exército), não se esperava outra coisa. Cumpriram a sua missão, ou seja, cumpriram ordens pois a tal foram obrigados e, em questões políticas, eram mantidos na ignorância como convinha. Já o mesmo não se poderá dizer das chefias destas forças e da PIDE, que esses sabiam perfeitamente que os tais atracadores eram guerrilheiros anti-franquistas.
 
E a imprensa da época, que já então fazia a opinião pública, como tratou os acontecimentos!?
 
A imagem de guerrilheiro antifranquista (alguns ex-militares do exército republicano e outros tantos, simples fugidos ou refugiados que acabaram por aderir à guerrilha, constituíam a guerrilha antifranquista que ainda tinha esperança em retomar o poder legítimo e republicano saído das urnas e deposto pela força das armas franquistas), como ia dizendo, essa imagem de guerrilheiro nunca passou pela imprensa portuguesa e, além de crimes que lhe imputaram e que nunca cometeram, bem como outras tantas mentiras inventadas a seu respeito para denegrir a sua imagem, em toda a imprensa foram tratados como puros “bandos de malfeitores”, “quadrilha”, “criminosos” e “Bandoleiros” como os apelidou por exemplo o «Diário do Minho», ou “bandoleiros espanhóis” como sempre os tratou o «Jornal de Notícias», ou ainda “bando de civis armados”, “malfeitores de uma quadrilha” ou “meliantes” como foram tratados pelo « O Comércio do Porto», ou ainda por “criminosos” e “bando armado” como foram tratados pelo «O Primeiro de Janeiro».
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Por sua vez no jornal de maior circulação em Portugal, «O Século», de dia 22 a 27 de Dezembro de 1946, dedicou aos acontecimentos sempre notícias de 1ª Página, letras gordas, e se a 22 de Dezembro o título era: « Dois dias lutaram encarniçadamente forças da GNR e do Exército contra o famoso grupo de bandoleiros que actuava em Trás-os-Montes e acabou por se render – o chefe do bando foi abatido». A 23 de Dezembro, também com notícia de 1ª página e continuação/desenvolvimento em pagina interior, o título passou a: «OS BANDIDOS capturados depois de luta feroz travada em Cambedo seguiram para o porto». No rol da notícia estava incluído quase um terço da população do Cambedo, que de “bandidos”, apenas estava o guerrilheiro Demétrio. Mas continua, ao terceiro dia (dia 24 de Dezembro), novamente notícia de 1ª página com o título«Um dos bandoleiros da quadrilha de Cambedo esteve ontem naquela aldeia e parece que ainda há outros bandidos em liberdade» na continuação da página interior começa com o título «A quadrilha de Cambedo». Ao quarto dia, dia 25 de Dezembro, apenas uma pequena notícia, confusa e irreal, pois fala-se num novo bando, o Bando do Barroso, do qual dois elementos teriam sido presos no dia anterior, no Cambedo. Finalmente no dia 27 de Dezembro, também notícia de 1ª página: « CRE-SE QUE O CHEFE dos bandidos de Cambedo não foi preso e receia-se que volte a organizar o seu bando».
 
Mas bem pior que os títulos de primeira página, era o que se vertia nas linhas do artigo.
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O primeiro começa assim«Chaves, 21 – Há tempo que se vinha registando-se longa série de crimes de morte e assaltos à mão armada, praticados por um perigoso grupo de bandoleiros, nas regiões de Montalegre e Chaves, em Trás-os-Montes e na província de Verin, em Espanha. Temidos por toda a gente os bandidos não hesitavam em abater quem quer que se opusesse aos seus desígnios.(…)»
 
É sabido, que à excepção do caso do Pinto de Negrões ( que logo reconheceram como erro crasso) os guerrilheiros apenas actuavam em Espanha, servindo-se das aldeias da raia portuguesa apenas como refúgio.
 
Ainda a respeito do deturpar da realidade, como mero exemplo, é sabido pelos relatórios da PIDE e das forças intervenientes, que tinham ordens para não deixar sair a população de suas casas nem da aldeia. A notícia no “O Século” diz assim: « Assim que começou a luta. Os sitiantes viam a sua acção prejudicada pelo facto de os criminosos não permitirem que os habitantes saíssem da aldeia, retendo-os a seu lado. Sabia-se que o bando era constituído por cerca de vinte homens (…)»
 
Só em valentia, talvez, os três guerrilheiros refugiados no Cambedo valessem por vinte homens. A mesma (valentia) que era atribuída pelo articulista às forças sitiantes «(…)Os soldados da GNR e do Exército, que se portaram com excepcional valentia (…)»
 
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Posso nada perceber de valentias, mas percebo um pouco de matemática. Então vejamos: mais de mil militares da GNR, Guarda-fiscal, PSP, PIDE, Exército (com morteiros) e Guarda Civil (Espanhola) contra 3 guerrilheiros. O resultado, foram dois dias de combate, três casas destruídas pelos morteiros e alguns incêndios. De parte dos sitiantes houve dois mortos e vários feridos, de parte dos guerrilheiros, um morto, um suicídio e um preso, ficaram sem munições. Que cada um tire daqui as conclusões e valentias que quiser.
 
Mas não termina aqui e, a notícia continua: « (…) também foram presos, por fazerem parte do bando ou por encobrirem, dezassete homens e quatro mulheres – a amante, a mãe e duas irmãs do Juan Salgado Rivera (…)» - aqui a única verdade é a de que foram realmente presos os dezassete homens (até mais) e as 4 mulheres, mas todos eles eram gente do Cambedo e não faziam parte do tal  “bando”, nem sequer eram familiares de Juan, como afirma a notícia.
 
Sobre o Juan, que até ser “fuxido” e ingressar na gerrilha antifranquista, sempre tinha sido contrabandista, agricultor e tocador de cornetim “O Século” na edição de 23 de Dezembro promove-o a Alcaide (equivalente ao nosso Presidente de Câmara): «(…) O Rivera foi alcaide de Léon, Espanha, quando da guerra civil, e tinha no seu activo mais de duzentos assassinos, dirigindo um bando comunista (…)» por sua vez, Manuela Garcia, na mesma edição de “ O Século” é apelidada de “espia do bando”. Mais à frente, a respeito das forças militares sitiantes diz o seguinte: «(…) Segundo afirmou o sr. Capitão Medeiros, um dos organizadores do ataque a Cambedo, nenhum dos habitantes da localidade ficou ferido, tão bem planeada foi a operação levada a cabo (…)» - Já Silvina Feijó, felizmente ainda viva, não diz o mesmo, aliás ainda tem a cicatriz e sofre das mazelas do tiro que então levou numa das pernas quando tinha apenas 12 anos de idade, para não falar das três casas que foram destruídas com os morteiros, dos palheiros incendiados. Mas a melhor de todas (na mesma edição) é quando afirma: «(…) entre outras proezas de vulto, os bandoleiros haviam planeado um assalto à cidade de chaves.(…)». Já sabemos que os três, ou melhor, dois guerrilheiros (pois o Juan foi morto nas primeiras horas), resistiram ao cerco de mais de mil militares durante dois dias e, só se renderam quando ficaram sem munições,  agora esta de (os três) planearem um ataque à cidade de Chaves, éra mesmo uma proeza de vulto.
 
No dia seguinte, “O Século” continua com a novela e chega a afirmar: «(…) Soubemos que o companheiro do Juan Salgado Rivera que tentara a fuga com aquele e que consegui escapar à perseguição das autoridades, esteve ontem em Cambedo, tranquilamente(…)» Sim, sim! Além de o Juan ter fugido sozinho, pois nunca se confirmou a presença de um quarto guerrilheiro no Cambedo e o presumível quarto guerrilheiro tratava-se do filho de Engrácia Gonçalves, que também foi preso, e que apenas saiu à rua quando o Juan iniciou a fuga a partir de sua casa, onde tinha pernoitado. Mas ainda há mais «(…) parece averiguado que os mais temíveis bandidos eram o Juan Salgado Rivera, que morreu durante a luta, e o Demétrio Garcia Prieto, que está preso. Qual quer deles era pessoa que não vacilava em abater fosse quem fosse, para levar a cabo os seus desígnios.(…)» Quanto ao jornal «O Século», ficamos por aqui, embora a novela ainda tivesse continuação no dia 27 de Dezembro.
 
E os jornais locais o que disseram!?
 
 
Um deles, o ERA NOVA, mais próximo do regime Salazarista o tal cujo director era o Luís Borges Júnior,  não sabemos, pois após buscas do mesmo na Biblioteca Municipal de Chaves, não conseguimos encontrar um único exemplar desse ano, ou desses anos. Quanto ao «Comércio de Chaves», que fazia questão de na primeira página, no cabeçalho, meter a nota : Visado pela Comissão de Censura, reproduzimos na integra a noticia, também de 1ª página, com o pouco ou quase nade que disse sobre o assunto:
 
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Em nenhuma das notícias a que tive acesso, os guerrilheiros do “Cambedo” foram tratados como tal. Faço minhas as palavras de Paula Godinho ao respeito, na Revista História, nº27 de Dez, 1996: «…Esta passagem pela forma como a imprensa relatou os acontecimentos no Cambedo, se não pode deixar de nos lembrar a apertada malha da censura, não deixa todavia de nos interrogar sobre a carga que o regime pretendeu retirar aos acontecimentos. (…)» quando «(…) é indubitável o alinhamento político dos elementos deste grupo, herdeiro do exército republicano (…)».
 
 
 
 
Outra coisa não se poderia esperar do que diria a imprensa da época.
 
Mas mesmo após o 25 de Abril e alguma luz feita sobre o assunto, ainda há escrita da imprensa, que hoje até se diz livre e informada, que às vezes gosta de lançar confusão sobre o assunto. José Amorim num editorial que denominou "A guerrilha da fome", interpreta os factos ocorridos em Cambedo de uma forma que merece ser destacada,
 
"O que dizem os factos é que a Espanha estivera em guerra civil de que Portugal, graças a Deus, se viu livre, por mérito de um governante que se chamou Salazar (...) Como consequência dessa guerra surgiram os homens armados que para sobreviverem não olhava a meios. Recorde-se o assalto à camioneta de passageiros Braga - Chaves e a morte de soldados da GNR abatidos na sua missão (...)Os Transmontanos esperam um relato isento desse episódio bélico que pôs em alvoroço as gentes da nossa região"
(Amorim, 1987).
 
Daqui se poderão tirar algumas conclusões e compreender o porque de as gentes do Cambedo abordam sempre o assunto com desconfiança e medo.
 
«A verdade verdadeira nunca foi contada sobre o Cambedo» foi-me dito por um dos filhos do Cambedo e que desde o inicio deste trabalho me tem de certa forma perturbado. Um facto é que há uma vontade expressa por parte de toda a gente que tem alguns conhecimentos sobre os acontecimentos em não falar sobre o assunto. Quer-se um assunto esquecido, tanto que até parece haver interesses nesse esquecimento.
 
Os factos históricos da época revelam bem quem eram os espanhóis do Cambedo. Da minha parte não tenho qualquer dúvida que eram “fuxidos” e guerrilheiros que lutavam por uma Espanha livre e democrática, a mesma que tinha saído das urnas e que a direita e mais tarde Franco nunca aceitaram. Esta realidade sempre foi escondida e deturpada aos olhos do povo português, um povo que na época também estava a pagar os males de duas guerras que não eram suas. Reduzir os guerrilheiros que lutavam por Espanha contra Franco a bandidos e atracadores era a maneira mais fácil de retirar toda a carga política sobre a questão além de vir a justificar acontecimentos como os que ocorreram no Cambedo. A mesma carga política já não é retirada sobre o povo do Cambedo e sobre os envolvidos, principalmente por parte da PIDE quando as gentes do Cambedo passam a ser tratados comos os “vermelhos do Cambedo” e todos os seus passos a ser seguidos.
 
E a amnésia, com a mesma raiz semântica que amnistia, faz equivaler o esquecimento ao perdão (Aguilar, 1996:47). O sublinhado é meu.
 
É verdade e, eu sou testemunha disso. As gentes do Cambedo preferem a amnésia e o silêncio a estarem nas bocas do mundo, principalmente quando os acontecimentos do Cambedo foram e às vezes, ainda são, intencionalmente distorcidos, mal interpretados e servem de pretexto para exorbitar velhas memórias, que essas sim, mereciam ser esquecidas, ou melhor, ignoradas.
 
E termino por aqui aquela que foi a “grande reportagem” deste blog, em homenagem e dedicada ao povo do Cambedo e, termino como os amigos galegos o homenagearam:
 
« EM LEMBRANÇA DO VOSSO SOFRIMENTO»
 
A partir de amanhã o blog voltará à normalidade do costume. Contudo fica em aberto um novo blog que dá pelo nome de “Cambedo Maquis”, onde continuarei a registar o evoluir das descobertas e da escrita sobre o Cambedo e os Guerrilheiros Antifranquistas da raia portuguesa. Um blog aberto à participação de todos quantos nele queiram participar e colaborar.
 
E para terminar esta aventura sobre o Cambedo só resta mesmo agradecer a todos quantos de uma ou outra forma, directa ou indirectamente colaboraram e tornaram possível este “trabalho” sobre a tentativa de contribuir para a despenalização e as verdades do povo do Cambedo, dos guerrilheiros antifranquistas que abrigaram e da vergonhosa batalha de 20 e 21 de Dezembro de 1946.
 
Os meus agradecimentos por ordem alfabética para:
 
Almor Lopes Doutel
António Augusto Joel
Arlindo Espírito Santo
Artur Queirós (bibliografia)
Bento da Cruz (bibliografia)
Carlos Lopes
Carlos Silva
Florinda Pinheiro
Irmã Maria do Carmo
João Madureira
José Fernandes Alves (bibliografia)
José Garcia Salgado
Paula Godinho (bibliografia)
Paulo Alexandre Lopes
Presidente da Junta de freguesia de Sanfins da Castanheira
Risco da Vinha (bibliografia)
Sebastião Salgado
Silvina Feijó
 
 
E a partir de hoje este blog continuará, não com publicações diárias, mas com publicações ocasionais com tudo que houver sobre o Cambedo. 


publicado por Fer.Ribeiro às 02:10
link do post | favorito

De João T. a 1 de Agosto de 2008 às 23:41
Falei com a minha avó deste que li este blog (ao telefone). Sim, ela lembra-se muito bem, e estaria durante a batalha dentro da casa do pai (Octavio Augusto), provavelmente também a minha tia. Quando lhe pedi mais pormenores ela disse "oh...é uma história muito comprida, não dá para contar ao telefone".
Assim que esteja com ela tenciono enviar os pormenores ao escritor deste blog por e-mail (dentro dos possiveis, claro, não vou divulgar nada que ela não queira).

Mais uma vez, obrigado por contar a historia do inferno que foi o Cambedo naqueles dias.

João T.


De Fer.Ribeiro a 1 de Agosto de 2008 às 23:51
Obrigado João pelas visitas, pelos comentários e pela disponibilidade. Agradeço-lhe que consiga o testemunho da sua avó, pois todos são importantes para se fazer a história dos acontecimentos do Cambedo. Agradecia que me contactasse por mail para: proart@net.sapo.pt ou ribeiro.dc@gmail.com


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